quarta-feira, 30 de julho de 2008

A promessa, a dívida e o pagamento

Em setembro do ano passado fiz um post em que citava o meu hábito de comprar livros com dedicatórias. Naquele mesmo post, lembrava que esse hábito já inspirara até um conto para um antigo e-zine em que eu escrevia, o Cabron. Isso deve ter acontecido lá por 2001 ou 2002. Estou voltando agora ao assunto porque naquele setembro eu prometi resgatar o conto aqui no blog.

Não importa que ninguém tenha cobrado. Tá aí.

DEDICAÇÃO – UM (QUASE) ROMANCE EMBALADO POR PALAVRAS DE SARTRE E CANÇÕES DE ROBERTO CARLOS

Cena um – 12 de fevereiro de 1969, Livraria do Globo.

O problema não é o fato de ser um idiota completo. A merda é que não faço a menor questão de disfarçar. Mas como eu podia perceber que a guria era metida a intelectual? Claro que se eu soubesse, não teria jogado Roberto Carlos na conversa. Mas não desisto fácil e acho que ainda dá pra consertar. Vou dar um livro de um escritor bem no estilinho dela.

Do que essas intelectuais gostam? Jorge Amado é comunista, ela deve gostar. Não... deixa a baianada quieta. Ela vai achar muito popular. Não sou especialista em literatura, mas sei que um bom autor não deve vender tanto. Tem livro novo do Érico Veríssimo! Todo gaúcho gosta do Verissimo. É uma característica nossa, gostar das coisas só porque são daqui. Pensando bem, melhor não levar esse livro. Não é a hora certa pra se dar um Verissimo de presente. Acho que não pegou muito bem aquele negócio do filho dele ganhar uma coluna na Zero Hora.

Poesia, quem sabe? Eu poderia comprar um livro do Mario Quintana e pedir pro velho autografar. É bem fácil encontrar o Quintana na Rua da Praia. Não, não... é melhor não. Ele é muito rabugento. Uma vez, um amigo meu que é poeta o encontrou, perguntou se poderiam trocar algumas idéias e ele respondeu que não, que sairia perdendo na troca. Não vou dar um livro de poesia pra guria. Vou acabar comprando um livro ruim e aí é que ela vai me achar um idiota. Melhor pedir ajuda ao vendedor.

O vendedor não era muito mais velho que eu, então fui direto ao ponto. Perguntei que livro ele recomendaria se precisasse impressionar uma guria metida a intelectual. O cara me indicou O Muro, de Sartre. É um livro de contos que foi lançado há dois anos. O vendedor disse que se a garota for intelectual mesmo, vai ser a leitura de final de semana dela. Se for só pose, ela não vai ter dificuldade pra ler o livro e ficará muito feliz por ter lido Sartre. É esse mesmo que eu quero. Quando eu tava saindo da loja, o vendedor me deu um tapa nas costas e disse: “agora capricha na dedicatória”.

Eu sou um pateta mesmo. Nem tinha pensado em dedicatória. Não posso escrever qualquer coisa. E seu eu escrevesse algo como “espero que este Muro possa ser uma forma de entrar na sua vida”? Não! Cretino e direto demais. Ela vai dizer que além de fã do Roberto Carlos sou dado a fazer trocadilhos infelizes. Melhor escrever algo mais simples, tipo “com carinho, Cezar”. Bah, simples demais. Que se dane, vou pedir ajuda ao Aurélio do meu pai.

Cena dois – 15 de fevereiro de 1969, quarto da guria, vinis e revistas no chão, Tropicália no toca-discos.

“India: Que os eflúvios divinos conservem a sublimidade dos sentimentos que ornam a tua personalidade de escol, são os votos do CEZAR.” Sinceramente eu não sei se choro ou caio na gargalhada. Que o rapaz era um idiota completo tava na cara, no jeito de vestir, na maneira como chegou na minha mesa, sentou e disse “e aí broto, tudo bem?”. Mas me comprar um livro e colocar esta dedicatória esdrúxula eu não esperava de jeito nenhum.

Naquele dia ele sentou na minha mesa, disse que se chamava Cezar, começou a puxar conversa. Eu tentava cortar o cara, pra ver se ele se tocava e ia embora. Mas não. Ele continuava falando, disse que eu parecia uma índia e assim me chamou pelo resto da noite: Índia. Quando ele perguntou o que eu tinha achado do último disco do Roberto eu resolvi apelar. Respondi que não ouvia esse lixo, que não gostava de rock‘n roll e que inclusive era contra o uso da guitarra elétrica na música brasileira. Não deixei mais ele falar. Ele ouvia com cara de pateta o meu discurso contra a americanização da cultura nacional. Até que se levantou, disse que tinha que ir embora e foi, cabisbaixo. Nessa hora me deu pena, eu também iria embora se alguém me fizesse o mesmo discurso.

Nem me lembrava mais do tal de Cezar, até que ele apareceu ontem no mesmo bar. Tinha um embrulho na mão. Me viu, acenou e gritou: Índia! Tive vontade de me esconder. Pediu desculpas pela forma com que foi embora na outra noite, falou que concordava comigo na questão da americanização da cultura brasileira e começou a fazer o mesmo discurso que eu fizera na outra noite. Era óbvio que ele não acreditava em uma palavra do que estava dizendo. Queria me impressionar com idéias que eu abomino e achava que estava abafando. Eu não ia agüentar aquele papo. Terminei minha cerveja e disse que era tarde, que precisava ir. Ele pegou a minha mão e disse: “pensei muito em ti durante a semana, até te comprei um presente”. Me passou o embrulho e pediu para que eu só abrisse em casa.

Além de chato, o cara não tem a menor sorte. Eu já tenho esse livro. Sempre me diziam que Sartre era ótimo e eu ficava curiosa. No mês passado fui à Livraria do Globo comprar algum livro dele. Pedi ao vendedor um que não fosse muito difícil. Ele me ofereceu justamente O Muro. Disse que era um livro de contos e seria um bom preparativo para as outras obras de Sartre. Nem li ainda. Dos males, o menor. Amanhã eu vou ao sebo e troco por outro. Será que o livreiro vai me oferecer menos pelo livro por causa dessa dedicatória?

Cena três – 23 de setembro de 2001, Upiara Boschi espirrando e escolhendo livros num sebo empoeirado e caindo aos pedaços.

Minha renite alérgica tá adorando essa história de passar a tarde nos sebos da rua Riachuelo. Maravilha. Até agora só comprei um Bukowski e um Gay Talese. É o quarto sebo em que entro, pergunto se tem John Fante e dizem que não. Paciência. Todos os sebos em que entrei eram feios e empoeirados, mas este é o único até agora em que os livros não estão em ordem alfabética. Se encontrar alguma coisa por aqui vai ser muita sorte. Deixa eu ver, Agatha Christie, não, Jorge Amado, não, Verissimo pai, não, Verissimo filho, não...

Um Sartre fininho? Li um livro do Sartre esses dias, acho que não vou ler outro tão cedo. Tem dedicatória. Que sacanagem vender pro sebo um livro com dedicatória. “India: Que os eflúvios divinos conservem a sublimidade dos sentimentos que ornam a tua personalidade de escol, são os votos do CEZAR.” Vou comprar. Só num livro do Sartre mesmo. Talvez eu nunca leia, mas essa dedicatória vale a compra.

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