quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

A gata sabe

Olhou pro lado, Débora dormia apertada entre ele e a parede naquele colchão minúsculo, sobre o chão. Sem sono, sentindo um pouco de fome, ele resolveu levantar. Com todo cuidado, é claro. Antes de fechar a porta do quarto, deu uma última olhada. Ela continuava dormindo, linda. Sorriu e foi até a sala. Ligou a TV, começou a ver um filme baseado em O médico e o monstro. No intervalo, foi à cozinha achar o que comer.

Continuou vendo o filme sem prestar muita atenção. Pensava mesmo era na menina que dormia em seu quarto pela segunda vez em duas semanas. Pegou no colo a gatinha branca e sem nome deitada no colchão que fazia as vezes de sofá da sala e perguntou:

- Que eu faço agora, linda?

A gata respondeu, é claro. Mas ele nunca entendia o que ela queria dizer. Mais uma vez teria que agir por conta própria – sabendo que a própria nunca foi a melhor conselheira. Decidiu deixar a gata de volta no colchão, o pacote de bolachas pela metade, voltar para o quarto e viver aquela história sem titubear. 

E assim fez.

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A história durou três meses e acabou sem culpas. Ele se despediu dela, da gata branca, dos colchões no chão. Voltou à cidade em que morava antes e começou a vida adulta – pelo menos a parte que envolve receber um contracheque no final de cada mês, pagar fatura de cartão de crédito e pensar que, guardando parte do que ganha todo mês, comprar um apartamento não seria tão impossível. 

Depois de Débora, outras paixões vieram. Talvez até mais sérias, por serem acompanhadas por responsabilidades que antes eram só perspectivas. Continuam se falando quase todos os dias, com a tranqüilidade recíproca de quem não deixou nada por dizer ou fazer.

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Tentava descobrir por que se pegara lembrando daquela noite, quase quatro anos depois, na última madrugada antes de se mudar para o apartamento que alugou. Se não era por Débora, talvez fosse pela gata branca. Pela vontade de perguntar de novo, dessa vez sem saber que resposta procura:

- E agora, linda, que faço?

Ele não tem outra Débora no quarto, nem colchões no chão. Se o dinheiro ainda é contado, pelo menos dura até o final do mês e permite extravagâncias maiores do que ir à balada duas vezes por semana, bebendo três cervejas em cada noite. Divaga um pouco e conclui que quer saber de onde vem essa impressão de que as coisas eram melhores antes.

Se a gata estivesse ali, faria aquela cara de tédio felino e diria que a resposta era óbvia.

- Há quatro anos você morava na maior cidade do país, tinha certeza absoluta do próprio talento, amigos trabalhando nos principais jornais e uma moça linda te esperando no quarto, apesar daquele colchão horrível. Comparado a isso, usar o décimo-terceiro para comprar a mobília que falta para o apartamento recém alugado no interior de Santa Catarina sempre vai te parecer frustrante.

Como de costuma, ele faria de conta que não entendeu a resposta da gata. Seguiria levando em frente a vida que aconteceu, não a que escolheu. Para compensar, auto-concessões. Morar sozinho pela primeira vez, com banda larga e todos os canais telecine a disposição, por exemplo. Da mesma forma que, três anos e meio antes, comprou uma cama box de casal com o primeiro salário que recebeu.

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