Naquele dia eles discutiram mais uma vez. Gritaram, se xingaram. Fizeram acusações graves um ao outro e tudo parecia irreversível. O homem saiu, batendo a porta. A mulher ficou em casa. Estava indignada. Queria ter continuado a discussão mesmo que não levasse a nada. Sabia que não levaria, mas aquele final abrupto – decidido apenas por ele – criou-lhe uma necessidade de ser má.
Foi até o banheiro. Precisava se acalmar. Queria estar calma para o que iria fazer. Lavou as mãos, se olhou no espelho. Riu. Ainda não tinha feito nada, mas já se sentia feliz, aliviada. Pegou a escova de dentes dele. Ficou olhando contra a luz da lâmpada. Riu mais uma vez. Pensou em quanto ele era metido a higiênico. Três banhos por dia, mil frescuras, nunca saía de casa sem escovar os dentes. Só hoje, naquela saída intempestiva. Olhou pra escova, cabo vermelho e branco, cerdas novinhas, a marquinha azul só um pouco apagada. Praticamente nova.
Começou pela pia. Estava mesmo precisando lavar o banheiro. Ele reclamava da sujeira todo dia, mas nunca se animava limpá-la. Agora ela mesma estava disposta. Pegou a escova e foi esfregando a pia calmamente até chegar ao ralo. Ali dedicou mais cuidado. Enfiou a escova buraco a dentro. Pensou que era um instrumento muito funcional, que deveria usá-lo mais vezes. Tirou os poucos cabelos que ficaram na escova. Riu. Olhou pra pia, pensou que era suficiente. Foi até o box do chuveiro. Esfregou o chão com cuidado pra não estragar as cerdas. Tirou o ralo, imundo, cheio cabelos. Dele, dela, uma confusão nojenta. E aquele ralo foi limpo pela escova que ele usava para limpar os dentes. Ela ria, ria, gargalhava.
Olhou para o vaso sanitário. Pela primeira vez pensou em parar. Teria ido longe demais? Não, agora iria até o fim. E logo descobriu que a escova era perfeita para limpar a privada. Chegava a cada cantinho, ia fundo. Esfregou aquele vaso até ficar mais limpo do que sempre esteve. Colocou um daqueles desinfetantes verdes e deu o trabalho por encerrado. Ainda ria. Se sentia ótima, vingada.
Quando ele voltou, estava mais calmo. Trocaram desculpas. Sorriram. Seria apenas mais uma briga comum de casal. A vida voltou ao normal, a rotina prosseguiu. O homem só achava estranho os ataques de riso dela toda vez que ele escovava os dentes.
(*) Publicado na primeira edição do fanzine Bronson, em dezembro de 2003. Republicado aqui em homenagem à amiga que inspirou e à amiga que adora.
Obrigada por retribuir a visita!
ResponderExcluir(De qualquer forma... eu acabaria voltando aqui... :P)
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirAdorei o texto!!!!
ResponderExcluirAté imaginei ele como referência para o roteiro de um curta...
]:)
Ai ai... meu dia ficou um pouquinho melhor ...
Obrigada
Juro que pensava ser a única, aliás pensávamos ser a dupla de amigas capazes de cometer atrocidade a um desafeto. Pelo visto o mundo é tão ruim quanto nós.
ResponderExcluirMelhor assim.
rss...
ResponderExcluir"Como é por dentro outra pessoa?
Quem é que o saberá sonhar?
A alma de outrem é outro universo
Com que não há comunicação possível,
Com que não há verdadeiro entendimento.
Nada sabemos da alma
Senão da nossa;
As dos outros são olhares,
São gestos, são palavras,
Com a suposição de qualquer semelhança
No fundo."
Fernando Pessoa