Ela tinha olhos de ressaca. Tinha, sim. Não estou citando, embora cite, Machado de Assis, Capitu, o escabau. Olhos de ressaca não têm o mesmo mistério do século XIX. Eram olhos de permanente ressaca, uma coisa meio junkie, de jovem de metrópole que passou as últimas três noites acordada, entre uma pista e outra, e os últimos três dias também, entre uma cama e outra.
O olhar era fácil de reconhecer, mas era totalmente inadequado. Não estávamos em uma metrópole e nem mesmo naquela capitalzinha em que as pessoas tentam ser mais modernas do que a cidade permite. No interior, na cinza e chuvosa cidade industrial que tenta aprender, a passos tímidos, o que significa diversão noturna, naquela noite em que aqueles nem tão rapazes de terno tocavam sucessos óbvios do rock anos 50, 60 e 70, aqueles olhos de ressaca contemporâneos não poderiam passar despercebidos. Deve ser por isso que não os esqueço desde aquela noite.
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“Quem gosta de homem é viado, mulher gosta de dinheiro”, ela disse, do nada, antes de se apresentar. Se era uma cantada, eu era o homem errado, pensei, lembrando que já tinha marcado três cervejas na comanda e que só teria dinheiro para mais três. Mesmo assim, dei conversa. Ela estava completamente bêbada, provavelmente misturou alguma coisa à bebida. Não falava coisa com coisa. Eu tinha participado do assassinato de uma garrafa de rum uma hora antes, minutos antes de entrar na balada, não estava muito longe dela.
Não é preciso se entender muito para que bocas se encontrem e façam o resto. Assim foi. No final da festa, estava tão alucinada ainda que deixou o carro por lá e me pediu carona. Quem me dava carona não se importou em deixá-la. No dia seguinte, encontrou o celular da moça.
- Aquela mulher que ficou contigo ontem é louca.
- Por quê [risos].
- Liguei para falar que estava com o celular e ela perguntou o que tinha acontecido. Disse que ela tinha ficado com meu amigo e etc. Ela disse: “mas eu não gosto de homem!”.
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Desci pra pista. Foi um ímpeto. Precisava voltar para a pista de dança e parar de perder a noite com aquele assunto. Desci as escadas e senti uma sensação canalha de ter feito a coisa certa, quando percebi que estava tocando uma daquelas músicas responsáveis por me tirar de casa nas noites de sábado. Era um Franz Ferdinand e o ano era 2004.
Encostei no primeiro canto vago de parede. Não deu tempo de parar no bar e pegar outra bebida. Precisava queria sair logo lá de cima, do terraço, me misturar aos que dançavam, me camuflar. Da parede, foquei uma menina que dançava. Cabelo roxo, uma blusa branca, olhos sacanas. Ela percebeu que era olhada, veio, ofereceu a cerveja, Skol. Antes do fim do take me out, o beijo. Era assim, naquelas noites de 2004.
Os problemas tinham ficado lá em cima, mas eu sabia que logo voltariam, desceriam e me encontrariam ali – beijando a estranha. Levei a estranha para um canto mais reservado. De lá, para casa – diante dos olhos incrédulos da pessoa que naquela noite era problema, embora tivesse sido solução em tantas outras. Era assim, naquelas noites de 2004.
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