terça-feira, 8 de setembro de 2009

Resgates

No meio de uma conversa, tropecei em um trecho de um dos meus livros mais queridos. O livro não é meu, é de Marçal Aquino e se chama Eu receberia a piores notícias dos seus lindos lábios. O trecho me deu vontade de reler a história.

(...)
"O que acontece é que, quando estou com você, eu me perdôo por todas as lutas que a vida venceu por pontos, e me esqueço completamente que gente como eu, no fim, acaba saindo mais cedo de bares, de brigas e de amores para não pagar a conta. Isso eu poderia ter dito a ela. Mas não disse.
(...)

Esse trecho, reencontrado ao acaso, é a história da minha vida. Pra celebrar a redescoberta dele, vou recuperar aqui no blog o perfil do Marçal Aquino que escrevi lá por 2002, quando ele deu uma oficina sobre diálogo no cinema, no Florianópolis Audiovisual Mercosul. Segue abaixo.

Roteirista por acaso e de má vontade - perfil de Marçal Aquino

O homem alto, de barba, jaqueta de couro e jeito descolado entra na sala onde a pequena platéia espera sentada. Vai logo avisando: "não vou quero ficar falando sozinho. É melhor que seja uma conversa". O homem é Marçal Aquino, escritor e roteirista de cinema. A platéia é formada basicamente por estudantes universitários - a maioria do curso de Cinema - dispostos a aprender os segredos e truques da criação de diálogos em filmes. Esse era o objetivo do whorkshop "Diálogos no cinema", um dos principais eventos do 7º Florianópolis Audiovisual Mercosul. Mas, esvaziado pela ausência do também escritor e roteirista Tabajara Ruas, o que seria diálogo se transformou num monólogo em que Marçal Aquino falou de literatura, de cinema e, principalmente, de si mesmo.

Aquino se apressou em dizer que não é exatamente um roteirista, mas sim um escritor que escreve roteiros. "Quando eu acho uma boa história não penso em fazer um roteiro, penso em escrever um conto, um romance". Diz ter uma relação romântica com o ofício de escrever. Não consegue criar no computador, prefere escrever a mão num caderno. "Cada escritor tem as suas manhas e manias". E ele parece ter muitas. Escreve desde os 14 anos e se sente realizado por conseguir viver disso, sem precisar de outra ocupação. Já publicou doze livros, quatro deles infanto-juvenis da antiga série Vagalume da editora Ática. "Estava muito feliz com a literatura até que trombei com o cinema".

Chegou ao cinema através do diretor Beto Brant. A parceria entre os dois começou quando o diretor quis filmar um curta-metragem baseado em um conto de Aquino. Ele autorizou, mas não participou do projeto. Um tempo depois, Brant procurava uma história para filmar seu primeiro longa-metragem e se interessou novamente por um texto de Aquino: o conto Os Matadores. E foi aí que Marçal Aquino entrou para o mundo dos roteiristas. Envolveu-se no projeto, levou Brant para conhecer a fronteira com o Paraguai - cenário da história - e iniciou uma parceria de sucesso.

Além de Os Matadores, a trabalho conjunto de Marçal Aquino e Beto Brant rendeu mais dois filmes, Ação entre amigos e O Invasor. E a parceria parece estar longe de terminar. Em entrevista ao jornal Zero, Beto Brant destacou o trabalho de Aquino: "O cinema que eu faço é muito comprometido com a literatura que o Marçal faz. Ele tem uma experiência como jornalista de muitos anos, e gosto desse apego dele com a observação da realidade. O que eu acho interessante nessa parceria é que a gente faz um registro do nosso olhar sobre o mundo contemporâneo". Aquino também elogia Brant. Diz que se trata de um diretor que não é escravo do roteiro. E cita uma qualidade do parceiro que pareceria óbvia, gostar de cinema. "Muitos diretores brasileiros não gostam de cinema, não têm cultura cinematográfica", explica.

Neste ponto do whorkshop, Marçal Aquino passa a falar sobre cinema de uma forma geral. Ou melhor, dispara a metralhadora para o cinema americano: "Americano não gosta de pensar, não gosta de nada subentendido"; "O cinema americano educou esteticamente o público brasileiro, por isso brasileiro não tem paciência pra filme europeu"; "Os americanos dominaram corações e mentes com a indústria cultura deles"; "Eles querem que o cinema seja como um sanduíche McDonald´s na China".

Mas irrita Marçal Aquino é a rigidez no formato dos roteiros de Hollywood. "Mostrei o roteiro de O invasor para um diretor americano e ele achou que o filme era uma comédia". O roteirista acredita que essas formas rígidas são uma perversão e considera um erro a pretensão de pensar pelo telespectador. "Se eles tem toda a forma por que acontecem fracassos de bilheteria?".

Quando a platéia começa a ter certeza de que está diante de um anti-americano legítimo, Aquino diminui o tom e diz que o cinema de Hollywood também pode ser maravilhoso. Cita Martin Scorcese e Steven Spilberg. Diz que não vai ser feito um filme sobre o holocausto melhor do que A lista de Schindler. E é do cinema americano que ele tira os dois exemplos de bons roteiros produzidos nos últimos anos: O sexto sentido e Amnésia. O primeiro, Aquino classificou como uma história besta que só se salva pelo roteiro. E reclama do uso do flashback no final do filme para desmontar os truques do roteiro e deixar a história mais fácil de ser compreendida. "É a hora de sair do cinema indignado porque estão insultando sua inteligência".

Em Amnésia o erro não teria se repetido. A narrativa ao contrário do filme de Christian Nola deixou Marçal Aquino chocado quando a viu pela primeira vez . "A trama é pequena e a montagem é engenhosa". Para Aquino, é o exemplo de um filme que não fez concessões e teve uma grande bilheteria. Mesmo que boa parte desse sucesso de público tenha acontecido porque muitas pessoas tiveram que assistir ao filme duas vezes para poder entendê-lo. E essa segunda sessão de Amnésia mostra como o grande mérito do filme é o roteiro. "Desmonta o truque, ele fica chato. Dormi quando vi o filme pela segunda vez".

Depois de falar sobre os dois filmes, Aquino começa a falar sobre arte de escrever roteiros. "Já que a gente tem que falar de roteiro... na verdade eu preferia falar de literatura", lamenta. Primeiro, deu uma dica: para aprender a fazer roteiros, o melhor exercício e pegar um filme que goste, conseguir o roteiro e analisar. Ele aprendeu fazendo. "Não tem mistério, é descrição e diálogo. Tem programas de computador colocam o texto no formato". Diz que um bom roteiro deve descrever ações, inserir diálogos e sugerir situações. Não deve ser muito fechado.

Ele não perde uma chance para desvalorizar a função, não gosta de escrever roteiros. Alguém pergunta porquê e ele responde meio sem jeito: "Dá um trampo e é pouco reconhecido. Se vacilar não é nem chamado para a estréia". Mas em seguida reconhece que o roteirista está cada mais valorizado no cinema brasileiro. Principalmente porque os cineastas precisam apresentar um roteiro para conseguir patrocinadores para as produções.

Depois de dissertar sobre literatura, cinema nacional, americano, roteiro e a própria vida, Aquino entra finalmente no tema do workshop: diálogo no cinema. Começa dizendo que os diálogos são o calcanhar de Aquiles das produções nacionais. Atribui isso à mania do brasileiro de querer falar bonitinho. Diz que os diálogos do personagens precisam ter legitimidade e só há uma maneira de consegui-la: ir para a rua e prestar atenção em como as pessoas falam. Cita uma frase de Nelson Rodrigues, que ele considera nosso melhor dialoguista: "escritor brasileiro toma pouco cafezinho".

A capacidade de ir para as ruas, captar o jeito de falar das pessoas e encontrar boas histórias, ele diz que aprendeu trabalhando como repórter. Aquino confessa que tem mania de ouvir conversa alheia. Conta que certa vez ouviu sem querer, num bar, uma conversa entre dois homens que terminava com a frase "ser mulher deve ser bem esquisito". Ficou por perto para tentar ouvir o resto da conversa, achar o contexto da frase. Mas ela acabava assim mesmo: "ser mulher deve ser bem esquisito".

Ao final, Marçal Aquino entrega seus segredos de roteirista. Diz que é preciso ter imaginação, observação e experiência. E que não basta transcrever a vida real porque soa falso, artificial. A vida real deve servir apenas como ponto de partida. E conclui que é mais fácil criar diálogos no cinema que na literatura. Ah, a literatura. "Mas já que a gente tem que falar de roteiro..."

4 comentários:

  1. "(...)me esqueço completamente que gente como eu, no fim, acaba saindo mais cedo de bares, de brigas e de amores para não pagar a conta"

    me sinto totalmente compelida a ler...

    =*

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  2. O livro é mais um que vai para a minha listinha mental dos que ainda vou ler.

    O trecho também parece um pouco comigo.

    Beijos

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  3. "Ela" é a personagem do livro, Lavínia...

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