Espelhos embaçados

Era tão séria, Ester, que nem beijava o marido quando ele fazia a barba.

Dizia que era como beijar outro homem, ideia que seria abominável. Sandoval ria do capricho da esposa e se acostumara a nem chegar muito perto naqueles dois dias necessários para a barba voltar a aparecer. O que ignorava Sandoval é que teve Ester seus dias de idolatrar os imberbes. Ou, pelo menos, um em especial.

Podia-se dizer que Antero era um obcecado pela ausência de pelos na cara. O ritual era diário: primeiro o banho longo, em que lavava o rosto cuidadosamente na água quente. Ali mesmo, pincel, creme e lâmina a postos, livrava-se da barba que mal começara a aparecer.

Ester lembrava muito bem daquele ritual, embora escondesse de todos. Acordava e Antero já estava no banheiro, sempre. Esgueirava-se, pé ante pé, e olhava pela fresta da porta, geralmente entreaberta. Quando chegava nessa parte da lembrança, tentava se distrair, pensar em outra coisa. Em vão.

Ela nunca olhou Sandoval fazer a barba. Por Ester, ele nem tocaria uma gilete. O marido argumentava o calor, a coceira da barba de mais de uma semana ou qualquer outra coisa para volta e meia aparecer com o rosto liso. No começo tentava roubar os beijos que Ester lhe negava. Depois cansou. Aceitava o jogo.

Nunca soube de Antero. Para Sandoval, Ester não tivera outros. Ela não disse isso, nem negou. Quando o assunto aparecia, desconversava, fingia vergonha e começava a lembrar dos beijos sem pelo do antigo amante. Evitar Sandoval naqueles dois dias de barba feita era como guardar o luto.

Ester sentia viver uma espécie de vida dupla, traindo o marido com a lembrança. Especialmente naqueles dois dias. Dias estes em que Sandoval se sentia autorizado a aproveitar a cara limpa com mulheres que conhecia de forma avulsa e de quem nem se preocupava em esconder que era casado. Barba de novo no rosto, acalmava-se e voltava para o aconchego da esposa. 

Era tão metódico, Sandoval, que só traía quando fazia a barba.