quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Combustíveis fósseis

Acompanhar uma reunião sobre zoneamento na Câmara de Vereadores, dar uma passadinha na Prefeitura para pegar uns papéis que poderiam render alguma coisa, correr para a redação a tempo de escrever a matéria. Ou seja, o planejamento era precário, mas existia. A vida é que não costuma respeitar planejamentos.

- Marcos, a gente pode dar uma passadinha na Prefeitura, pra eu pegar uns papéis? É rapidinho.

O motorista fez o retorno. A mudança na rota ia fazer a volta ao jornal demorar um pouquinho mais, mas ele não reclamou. Não devia ter ninguém esperando pelo carro. Toca o telefone.

- Oi?
- Você já viu o que a Cláudia escreveu?
- Como?

Era um tio ao telefone. Cláudia era a uma ex-namorada com quem não falava pessoalmente há algum tempo. O tio e ela nunca tinham se visto e mal sabiam um do outro, o que tornava tudo aquilo ainda mais estranho.

- Não tô sabendo de nada...
- Parece que ela acabou com o namorado. Colocou um texto na internet, fala coisas horríveis desse cara e de ti também. Tens que fazer alguma coisa...
- Ela acabou o namoro?
- O texto começa dizendo “Um era um cretino. O outro, um covarde” e depois disso é lama...
- Tem certeza de que ela acabou o namoro?
- É com isso que estás preocupado?

Era com isso que estava preocupado – embora essa não fosse a palavra exata. Preocupação não era o que sentia, na verdade. Não fazia sentido, mas se sentia feliz. Namorou Cláudia durante pouco tempo, três ou quatro anos atrás, quando morava em outra cidade. O final foi cheio de brigas, idas e vindas.

A mudança de cidade e o tempo fizeram com que as mágoas mútuas de fim de relação virassem algo contornável e eles voltaram a se falar esporadicamente. Até ficou feliz quando ela disse que estava namorando outro sujeito. Trocavam confidências sobre a vida que levavam e lembravam com carinho de coisas pontuais da época em que estavam juntos. Não conseguia entender aquele súbito alívio que sentiu quando soube que ela estava sozinha de novo.

- Ela escreveu que tu...
- Esquece “eu”, o que ela disse sobre ele? Como assim, acabou? Por quê?
- Mas, cara, ela escreveu coisas muito sérias aqui.
- Isso não importa! Olha só, tio, tenho que desligar. Tá uma correria danada aqui.

O carro tinha chegado à Prefeitura. Desceu, foi até o balcão, disse o que combinara e com quem. Indicaram o caminho, foi até lá, pegou um maço de documentos. Agradeceu, folheou, voltou para o carro. Tudo isso mecanicamente, é claro. Na cabeça, aquela história toda que o tio – por quê logo ele? – ligou para contar.

Lembrou da última vez que conversou com Cláudia. Ela se despediu dizendo para ele deixar a vida chata que andava levando na nova cidade enquanto não tivesse quem magoar. Ele brincou, disse que sempre dava um jeito de magoar alguém e riu. Ficou claro que Cláudia não achou muita graça, mas o assunto parou por ali.

Não lembrava quanto tempo tinha aquela última conversa. Duas semanas, um mês, mais? Pensou na preocupação do tio sobre o que ela disse no tal texto. Não conseguia imaginar o que poderia ser tão grave, se as atuais conversas eram tão agradáveis. Pelo menos para ele. “Um era um cretino. O outro, um covarde”, balbuciou.

O “covarde” que lhe coube estava na medida. Havia boas doses de covardia no quinhão de culpa dele pelo fim daquela história. Aceitava tranquilamente a pecha. Até voltava a se achar covarde por não aproveitar a pequena euforia que sentia por Cláudia estar sozinha como combustível para chutar tudo e fugir dali. Voltar para a velha cidade, a velha casa, os velhos braços – sem pensar muito em até que ponto isso era mesmo possível.

Mas o carro chegou ao jornal e ele tinha uma matéria para escrever. Depois de lead, sublead e da preocupação em reproduzir fielmente as frases dos vereadores, o impacto de tudo aquilo diminuiu. A ponto de começar a acreditar que talvez não houvesse acontecido telefonema nenhum – só um devaneio rápido, no caminho entre uma monótona reunião na Câmara e uma passada rápida na Prefeitura, para pegar uns papéis.

Que, no final das contas, nem rendiam matéria.

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