(ela sonha, ele tenta fazer do sonho um texto)
Estava loira e não havia nada de estranho nisso. Como também não havia naquele longo vestido rosa cheio de babados, na coroa discreta e em ser insistentemente chamada de “princesa” em plena avenida Madre Benvenuta. Se ela era a princesa Aurora, porque haveria algo de estranho em tudo isso?
Se distraiu pensando na estranheza e na falta dela quando foi interrompida por Stacy. A amiga tinha pressa porque as duas precisavam ir até a Fefelech, onde o príncipe Felipe disputaria um duelo importantíssimo. Aurora não conseguia lembrar o porquê da importância do duelo, mas sabia que teria um papel decisivo nele. Tão importante que se deixou um bilhete para lembrar. Estava no banco do ponto de ônibus perto das Casas do Cano. Por isso ela estava na Madre Benvenuta ainda.
Estava lá, num post it colado ao lado de um anúncio de cachorro perdido. Era um feitiço de cura. Ela só precisaria dizer a frase escrita no bilhete. Para isso precisava estar no duelo, pronta para qualquer eventualidade. Balbuciou a frase três vezes, guardou o bilhete e partiu para a Fefelech, que ficava perto, no final da avenida.
Aurora e Stacy apressaram o passo. A amiga não parava de falar sobre o feitiço, feito pelo mago Merlin. E não parava de falar do tal mago, quase com devoção. Enquanto ela falava, a princesa se distraía mais uma vez pensando em quanto a amiga lembrava uma atriz de seriado que ela não conseguia lembrar qual era.
Foi quando viram Felipe, o príncipe, também de passo apressado, estranhamente sem cavalo. Quando as viu, perguntou se elas sabiam onde ele poderia conseguir uma espada para o duelo. Aurora não conseguia reconhecer o príncipe, mas se sentia muito ligada a ele. Divagou nos pensamentos, enquanto Stacy reclamava que era um absurdo um príncipe ir sem espada para um duelo, que por sorte Merlin estaria lá e emprestaria uma.
O príncipe decidiu ir correndo na frente. Aurora e Stacy até iriam, não fossem os longos vestidos atrapalhando. Antes que ele corresse, a princesa pegou um post it colado em uma das lixeiras azuis da calçada. Leu para o príncipe Felipe uma mensagem de incentivo para o duelo que se aproximava. Esses pequenos bilhetes sempre salvam Aurora quando ela não sabe o que dizer. Não é fácil ser princesa.
As duas chegaram com um pouco de atraso. Aurora confundiu a Fefelech com a empresa de telefonia e teimou com Stacy para que entrassem. A amiga, contrariada, não quis contrariar a princesa. Chegaram ao local do duelo quando ele já começara.
Além de não saber o motivo do duelo, Aurora também não sabia quem era aquele outro príncipe, quem ele defendia. O que deu para perceber é que Felipe estava levando a pior na luta de espadas. Procurou Stacy para assistir o confronto de mão dada com ela, mas ela conversava animadamente com Merlin.
Saiu da nova distração ao ouvir um grito de dor. De Felipe. Um golpe de espada do adversário fez o príncipe cair inerte no chão. Aurora correu desesperada até ele. Em meio ao sangue do príncipe, ela começou a chorar. Ao lado, também machucada – sabe-se lá como – Stacy gritou que ela deveria usar o feitiço de cura. Aurora procurou o post it com a frase que ela deveria dizer para colocar a magia em ação. Esquecera as palavras que tentou decorar no ponto de ônibus e não achava a porcaria do papel.
Começou a chorar mais ainda, pensando que aquele destrambelhamento todo ia causar a morte do príncipe, tão especial para ela, e da amiga mais querida. Decidiu voltar ao ponto de ônibus, no começo da Madre Benvenuta, atrás do bilhete. Foi contida por um novo grito de Stacy, que lembrava as mágicas palavras que a princesa esquecera. Aurora correu para Felipe e falou com convicção:
- Seu coração é o meu coração!
O príncipe continuou inerte, continuou banhando em sangue.
- Seu coração é o meu coração! Seu coração é o meu coração!
Repetiu inúmeras vezes aquela frase simples e nenhuma reação vinha do corpo do príncipe. Chorava desesperadamente. Pelo reino, em perigo com a morte do príncipe. Pelo príncipe, que parecia tão importante. Por ela, princesa, tão desprotegida no campo de batalha. Por ela, Aurora, porque parecia ser o certo a fazer. E por ela, nem princesa nem Aurora, que pedia um pouco daquele choro para si.
- Não sei por que você está assim, é só um jogo – disse Stacy, em pé, restabelecida e estranhamente indiferente.
Ao final daquelas palavras, o príncipe Felipe se levantou e saiu andando, como se nada tivesse acontecido. Stacy fez o mesmo, de mãos dadas com o ex-Merlin. Foi quando ela percebeu que não era princesa, que não era Aurora, que não era loira.
Naquele mesmo instante teve a certeza absoluta de quem era e de quem não era.
E parou de chorar.
Parece muito com Alice. Fazia um bom tempo que não vinha aqui. Quando venho sempre sinto saudades de você e desse seu jeitinho pós-moderno encantador.
ResponderExcluirBeijos