quarta-feira, 25 de março de 2020

Quarentenares #05

Hoje não tem vinho, gin ou chá. Escrevo a seco, que é mais ou menos como sinto estes primeiros toques no teclado. Temo que os textos da quarentena fiquem repetitivos e, ao mesmo tempo, sei que este é o destino desse tipo de narrativa. A janela é a mesma, a praça continua vazia e não posso estar lá. Como ampliar os horizontes?
Se eu ainda tivesse um carro, desceria à garagem e sairia com ele por essas ruas esvaziadas. Vai fazer três anos que vendi o único carro que tive - não foi nenhuma epifania de sustentabilidade, não. Eu precisava pagar dívidas e tinha um carro. Hoje não tenho carro e ainda tenho incomodações. Uma amiga disse na época que aconteceria exatamente isso, mas era a opção a mão. 
Nestes três anos quase nunca senti falta do veículo próprio. Por um punhado de reais, o uber me leva para onde costumo ir e me traz de volta. Sinto falta das viagens, a estrada era divertida - especialmente nos primeiros anos dirigido. Depois entediei, tudo entedia. Nos últimos tempos vinha sentindo falta, mais ainda agora.
O carro poderia me tirar daqui. Exercito a imaginação: para onde iria tivesse um carro agora? Assim, timidamente para uma primeira viagem, acho que daria uma volta até a beiramar, atravessaria a colombo salles rumo à beiramar do continente. Na volta, pedro ivo, padre roma, quem sabe ir até o mais perto possível da hercílio luz. Voltar para casa. Não queria muito, não. Sentir o cheiro da noite - fora de casa. Seria bom.
Encerrada a primeira semana de restrições, aquele endosso quase unânime às medidas do governo estadual começa a esmorecer. A política vive de narrativas que se contraponham e agora existe um duelo entre quem tem mais medo da doença e quem tem mais medo do colapso econômico. E existe quem viva de explorar esses medos, mas não é aqui o espaço para falar disso. Tenho outros - medos e espaços. Sei que hoje falava com um colega na rádio que há momentos em que a realidade se impõe. Eu gostei da frase, ele também - repetimos. 
Agora, sozinho em mais uma madrugada de quarentena, tentando tirar a seco outro texto para a série de quarentenares, penso se não é otimismo demais achar que a realidade consegue se impor em meio ao vírus da loucura. É melhor ser otimista, sempre achei. Quando isso tudo passar, quero voltar a dirigir.

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