segunda-feira, 23 de março de 2020

Quarentenares #04

Tem uma coisa que as pessoas deveriam saber sobre mim: não confie nas promessas que faço bêbado na madrugada. Por mais bem intencionadas que sejam, por maior que seja a vontade, naquele momento, de cumpri-la. Melhor duvidar. Ontem, por exemplo, eu prometi que após duas noites de vinho, este seria um texto de gin. É um texto de chá de hortelã.
Aqui em casa a quarentena começou, de fato, na tarde de terça-feira, depois de voltar do almoço fora da casa. Foi quando começaram a ficar claras as medidas do governo e da prefeitura, a importância e a necessidade do isolamento social. Soubesse que era o último almoço na rua, teria escolhido melhor o lugar. Teria passado no meu café preferido depois. Coisas que pensei na quarta-feira e nos dias seguintes. Penso menos agora.
Desde então, duas noites de gin e duas noites de vinho - três delas de alguma forma documentadas aqui neste diário. Quarentenares é uma livre adaptação da expressão "quintanares", as peculiares histórias que envolviam Mario Quintana. Acho que ele me autoriza a adaptação carinhosa para este momento tão inusitado e assustador.
É engraçado que há muito tempo eu digo que preciso aprender a gostar de estar na minha casa. Quem bem me conhece - e muitos que mal me conhecem também - sabe que gosto de estar na rua. Que se posso, saio todos os dias, vivo todas as noites. É a rotina que me dei nos últimos cincos - confortável e tediosa como qualquer rotina.
A quarentena tem feito eu aprender na marra a gostar de estar em casa, a bastar minha própria companhia, a escolher diversões introspectivas. E foi dentro desse processo que decidi esta noite manter as garrafas de bebida fechadas. Tudo indica que os dias de restrição serão longos e eu quero sobreviver a eles - e não será com um porre por noite que isso vai acontecer, certamente. Mas, para além da saúde do corpo e da mente, a ideia de que preciso me entreter sobriamente também.
Dancei com o gato, li, vi episódios de uma série, esbocei um texto profissional, gravei mais um vídeo com resenha de livros - gostei tanto disso que lamento não ter iniciado antes esse projeto. Foi um bom domingo, por aqui. Fiz a barba para ver se dou um tempo na mania de levar a mão até ela, não muito recomendável nesta época. Quando me olhei no espelho só de bigode, pela primeira vez achei que era um opção - eu que sempre achei tão ridículo manter apenas um tufo de pelos entre o nariz e o lábio. Deixei as pessoas verem, via redes sociais, fiz fotos e vídeos divertidos, até cogitei deixar.
Mas a verdade é que eu não sei ser o cara que ostenta um bigode. Talvez eu precise me levar menos a sério para isso. Mas hoje não consigo. Meu personagem já tem elementos demais para sustentar, fiquei com medo de virar caricatura. Voltei ao espelho do banheiro e terminei o serviço. Revi meu rosto, gostei dele. É bom me ver de vez em quando.

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