domingo, 22 de março de 2020

Quarentenares #03

Alerto desde já que este é um texto de vinho. Apesar de que no momento em que teclo estas linhas o fim da garrafa do bordô francês tenha me feito apelar à vodka com coca-cola. Mas está claro desde que comecei estas crônicas da quarentena - as quarentenares - que os textos são de vinho ou gin, pouco importando como a noite acabe.
Liguei a tevê pouco antes de escrever a crônica de hoje e passava Um Copo de Cólera. O filme é bem ruinzinho, apesar de ter uma das mais sinceras cenas de sexo que eu já vi na tela, talvez resultante da química que ator e atriz, casal fora das telas à época, já tinham. Mas eu tenho um carinho especial por Um Copo de Cólera, o breve romance de Raduan Nassar. 
Lembro exatamente de quando lia esse livro, dentro de um ônibus com destino ao Morro da Cruz, ao trabalho, uns dois anos atrás. Eu tive uma epifania justamente no trecho da mesma cena de sexo que o filme mostrou com tanta força e coragem. 
É até bobo dizer, porque tem mais a ver comigo do que com o filme. Na cena, o casal se encontra e sem qualquer preâmbulo, cortejo, flerte, frase jocosa ou o que for, começa a transar com toda a volúpia de quem está no ápice do desejo. Eu li aquilo e duvidei. Quem é que mal se vê e já sai desejando desse jeito, ambos se comendo como se estivessem retomando algo interrompido?
Estava no ônibus quando li essa parte, pensei isso. Parei, olhei para a frente, para o nada. Veio a epifania: desejo é assim, Upiara. Um casal que se deseja é assim, Upiara. O errado é você que vincula desejo a pré-determinações, a beber meia dúzia de cervejas ou alguns drinques. Errado é você que teve a mulher da tua vida na tua cama por vários anos e não entendeu que sexo não bate na porta antes de entrar. Aquela epifania me desmontou, porque eu estava muito convicto de deixar com ela todas as culpas da nossa falta de desejo. E ali entendi a minha parte. 
Eu não ia falar disso, provavelmente nunca. Mas a coincidência do filme passando me trouxe aqui. E para que servem estes registros de quarentena se não como divã sem analista? Aquela epifania fez com que eu tratasse de forma diferente o sexo nas relações, acho que essa parte melhorou. Que epifanias vai trazer essa crise do coronavírus? Por enquanto, apenas descubro que ficar em casa não é tão ruim assim - quando você tem uma estrutura básica e os privilégios que a vida te deu, sei que os tenho. Mais do que privilégios, boas bebidas. Com elas, eu sigo adiante. Por todas as noites que teremos à frente. Antecipo a quem se aborreceu neste texto: amanhã é noite de gin.

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