sexta-feira, 20 de março de 2020

Quarentenares #01

Nunca gostei da expressão “se cuida”. Sempre me pareceu meio arrogante, meio jocosa, como se a pessoa soubesse que de alguma forma a outra não é muito de se cuidar. Em tempos de coronavírus, entretanto, o “se cuida” perdeu completamente esse tom - talvez fantasia minha, mas perdeu. É puro carinho dizer às pessoas que gostamos para que elas se cuidem nesta confusa época em que se cuidar é uma forma de cuidar de todos. 
Escrevo isso com a quarta taça de gin tônica suando ao meu lado, numa sala escura em frente à janela que chove. A quarentena faz nosso olhar mirar o mundo, pelas telas, e para a gente mesmo, quando as telas sufocam. Quarentenar é um longo intercarlar entre o mundo e si mesmo. Como chegamos a essa situação? O que poderia ter sido evitado? Tanta coisa. Como cheguei a essa situação, o que poderia ter evitado? Tanta coisa. 
Mas como é gostoso ter frutas e especiarias para misturar com gin tônica, não é mesmo? Ninguém vai sair dessa história como entrou, tenho certeza. É prazeroso ter uma certeza entre tantas dúvidas. O coronavírus joga o mundo inteiro num divã metafórico - sem analista, para complicar as coisas. Sozinhos vamos revendo as escolhas que nos levaram até aqui.
Estamos ainda nos primeiros dias de restrições e começo a pensar se estarei aqui, nesta sala escura, olhando as janelas vizinhas e tentando escrever alguma coisa daqui seis semanas, quando completo 38 anos de uma vida que sempre entendi bem conduzida. Agora, aqui, sozinho em meio à quarentena, sem ter de quem cuidar, sozinho como escolhi ser, martela a dúvida sobre esse conduzir, sobre as escolhas, sobre o personagem que criei pra mim e que com tanto empenho represento. 
São as dúvidas do gin. Tivesse escolhido abrir o vinho, talvez fossem outras. Amanhã, esta hora, saberei.

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