terça-feira, 7 de abril de 2020

Quarentenares #09

A quarentena se parecia muito com a vida fora dela. Ele faz planos, idealiza desejos, prospecta encantamentos, foge - antes ou depois da conquista, pouco importa -, começa tudo de novo. Acostumara-se àquele círculo vicioso nos dias livres e conseguia mantê-lo - rudimentarmente - na época de isolamento. 
As cinco semanas de quarentena praticamente coincidiam com a presença daquela mulher na janela do apartamento em frente. Lembra bem do primeiro dia que ela apareceu e aquela janela passou a ser um olhar inevitável, obrigatório e desejável. Sim, a mulher era bonita. Passou os primeiros dias de quarentena tentando perceber seus hábitos, suas rotinas. Tentou ser visto - ela não pareceu notar.
Aqueles primeiros dias de isolamento foram cultivados no álcool. Madrugadas de vinho, gin, cerveja - que o faziam passar o tempo no computados estrategicamente colocado junto à janela. Por vezes, ela estava no outro lado. Chegou a tentar acenar com uma taça de vinho, mas ela não viu. Ele, tímido, foi tímido no gesto - acredita. Na próxima vez, ela veria.
E se não visse? Foi lá pela terceira ou quarta semana de quarentena que teve uma ideia ousada. Já se acostumara a pedir, mas sexta-feiras, duas garrafas de um litro de chope Ipa de um dos bares que frequentava nos dias em que isso era permitido. Foi enquanto bebia a cerveja que teve a ideia: pedir as duas garrafas, como sempre - rotinas da quarentena -, mas destinar uma delas à mulher da janela do apartamento em frente. Entregaria a garrafa ao porteiro, devidamente desinfetada e embalada em plástico, com um recado sucinto. 
- Cansei de beber cerveja sozinho. Quer me acompanhar na janela esta noite?
Você pode perguntar como ele entregaria a bebida sem saber seu nome, seu apartamento, entendo. A sorte às vezes sorri aos quarentenados. A mulher bonita do prédio em frente mora dois andares acima do apartamento onde morou uma querida amiga dele. Por isso, tinha o número. Falta a bebida e a coragem. A bebida teria na próxima sexta - e coragem, quando?

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