quarta-feira, 8 de abril de 2020

Quarentenares #10

Nos primeiros dias de isolamento uma ideia me consumia - ou entretinha, o que é mais ou menos a mesma coisa quando não se pode sair de casa. Eu pensava qual seria a primeira coisa que faria - e quem seria a primeira pessoa que eu ia encontrar - quando pudesse voltar à vida normal, às ruas, à noite, às gentes, minhas gentes. Com as semanas passando, vai ficando clara a falta de sentido desse planejamento, tanto como ideia, quanto como entretenimento/consumição.
A soma dos dias e dos desejos reprimidos vão me criando uma sensação de que no dia em que a porta se abrir, ficarei parado ao pé da mesma porta como um gato medroso - aliás, como o meu gato medroso faz quando brinco de lhe abrir a porta. Ao primeiro ruído, o medo supera a curiosidade e ele corre de volta ao esconderijo. Fica essa sensação de que querer tanta coisa é o mesmo que querer nada. Voltar ao esconderijo confortável que meu apartamento virou nestes dias e que talvez nunca deixe de ser.
O lado triste da brincadeira de projetar o primeiro dia/noite livre é justamente a amplidão de possibilidades. Estar sozinho por tanto tempo faz com que se pense muito sobre estar sozinho. E vai ficando agridoce a ideia da variedade, das mil possibilidades. Vem de algum lugar um desejo de ter um lugar para ir, uma pessoa para encontrar. E partir dali.
Como se constrói isso quarentenado? Com ficção, como ontem. Com desejos idealizados, como nos primeiros dias. Com saudades de onde já estive, como eventualmente. Nunca com o real. É como ter uma epifania num deserto - embora talvez o deserto seja o lugar propício para uma epifania, tanto quanto o confinamento. 
Divago e sei que estou divagando, porque tenho algo a confessar nesta quarentenar - e confissões antes do quinto parágrafo não valem a pena. Ou não tem verdade suficiente. Confesse, mas postergue a confissão por pelo menos quatro parágrafos. Vim aqui confessar que fugi. A porta se abriu e eu não tive medo, não corri para o esconderijo. A porta era um convite inesperado. Talvez seja por isso que eu parei de projetar o que fazer no dia da liberdade - queimei a largada. Jamais esquecerei daquelas cervejas fortes na calçada diante do mar de Coqueiros. E nem de quem se atreveu a me tirar de casa quando eu já sentia que ninguém se importava.

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